Situemo-nos 47 anos depois de 1976 (entrada em vigor da actual Constituição da República), fruto de tudo o que aconteceu pós Abril de 1974 ou, até, apenas a partir de 1982, com o fim do Conselho da Revolução e entrada em vigor da Lei 29/82, Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas, que culmina o “normal” funcionamento dos órgãos de soberania do Estado, após o tumulto anárquico desencadeado pelo golpe de Estado do chamado MFA — Movimento das Forças Armadas, para se chegar ao grau zero da política.
Pois é aí que nos temos que reportar sobre o essencial que se passa hoje em dia e o sistema político (e respectiva ossatura) e ideologia que o suporta.
E podemos considerar que 47 anos depois, conseguimos atingir o “grau zero” da política. Mas como o zero — essa invenção da matemática Hindu — tem um carácter neutro (até de “vazio”), teremos que acrescentar uma conotação de menos (-) isto é, negativa, a que se reduziu a política, para que não restem dúvidas sobre aquilo que queremos significar.
Ora, considero que o grau zero (-) da política (com minúscula) foi agora atingido neste cantinho à beira-mar plantado — hoje em dia, mais ardido do que plantado — que já nem marialvas tem, aliás uns tipos execráveis segundo os “valores” modernaços que por aí correm.
E foi atingido com a actuação deste governo desde que tomou posse e culminou agora com a escandaleira multifacetada, desavergonhada, trapalhona e até criminosa, do privatiza/nacionaliza/privatiza, da TAP (agora lê-se TAPE, de tapar).
Os restantes órgãos de soberania acompanham e às vezes fazem concorrência ao governo e têm como pano de fundo o estado quase inerme da Justiça — que não deixa de ser uma emanação da política!
O que se está a passar, parecendo uma anormalidade e causando arrepios e manifestações de escárnio e maldizer (e também algum encolher de ombros) na generalidade da população, mesmo naquela que não tem condições para ter mais consciência da gravidade das situações — mas também não passando disso —, acaba por ser “natural”, para não dizer “normal”…
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No ano passado visitei Ovar. Passeando perto do centro, topei com uma casa antiga e térrea, onde, por nela ter vivido, cerca de três meses, o “Charles Dickens” português conhecido por Júlio Dinis, fizeram dela uma casa museu(1).
Entrei e gostei. Nela, segundo rezam as crónicas, escreveu este mestre da língua, o romance “Morgadinha dos Canaviais”, editado em 1868, que eu tinha lido quando andava no liceu (na altura os professores mandavam ler bons autores…). Comprei uma edição de bolso à venda no local e recolhi-me com a intenção de o reler. E se bem pensei, melhor o fiz, deleitando-me.
O romance situa-se em meados do século XIX e sobretudo, numa aldeia perdida no Minho.
Parte da narrativa dedica o autor a descrever o regime liberal constitucional, baseado em partidos políticos (parecendo ser dele adepto) mas apontando os seus vícios e consequências, bem como as reações populares aos mesmos.
Todos os grandes escritores, aliás, sobretudo os da segunda metade do século XIX, descreveram e zurziram o sistema e as consequências políticas e sociais desse mesmo “sistema”.
Ora o que Júlio Dinis descreve — aliás com grande dose de benevolência, não fosse ele um romântico encartado — “mutatis, mutandis” e tendo em conta a distância no tempo, tem enormes semelhanças com a actualidade.
O que se passa hoje em dia é que estamos a tentar implementar tal sistema, muito agravado pela implantação da República, pela quinta vez, apesar das nuances existentes. Sistema que teve origem entre nós, por via da revolução liberal e maçónica de 1820.
Ora os sistemas políticos, como as leis, devem ser pensados em função da natureza humana e da idiossincrasia de cada povo, o que dificilmente ocorre aos chamados revolucionários, agora apelidados de “progressistas”, pela simples razão de que não se podem criar pessoas para se ajustarem às leis ou aos regimes políticos.
Para já não falar naquilo que é intrinsecamente mau.
O grau zero da política
Façamos, pois, um pequeno exercício de memória política e histórica, para entendermos melhor toda a problemática.
A primeira tentativa ocorreu na sequência da já citada Revolução Liberal, que rebentou no Porto em 24 de Agosto de 1820 (cujo ducentésimo aniversário foi comemorado, aliás, com muitas loas por parte da Assembleia da República), e deu origem à Primeira Constituição de 1822, inspirada na Constituição de Cádis de 1812 e na Francesa de 1793, tendo o cataclismo da Revolução Francesa e as invasões napoleónicas como pano de fundo. Rapidamente o país entrou em turbilhão, o que acabou na pior guerra civil que entre nós já houve, entre 1828 e 1834, a que a Convenção de Évora-Monte pôs termo, mas não pôs fim.
O país que já estava arrasado por via das invasões francesas e do grito do Ipiranga brasileiro ficou em cacos.
A segunda tentativa durou entre 1834 e 1851 e acabou novamente em bancarrota, duas guerras civis (1846 e 1847) e finalmente com mais um golpe de Estado do caudilho general Saldanha (chegou a marechal, tem estátua em Lisboa e jaz num corredor de acesso ao Panteão da Casa de Bragança, em S. Vicente de Fora).
A terceira tentativa veio a seguir com a chamada “Regeneração” e o “Rotativismo”, isto é, tentou-se implantar um sistema à moda inglesa, em que um partido mais à esquerda (o “Histórico”) e outro mais à direita (o “Regenerador”) se alternassem no poder, tentando que as forças políticas passassem a dirimir as suas lutas no parlamento em vez de andarem aos tiros onde calhasse.
Falhou tudo, apesar de ainda se terem aguentado uns poucos anos à custa de empréstimos externos (a única coisa que os políticos que operam neste sistema sabem fazer, ou seja, viver da dívida), nomeadamente do banco inglês “Barings” — banqueiros da Coroa Portuguesa desde 1805 —, o que só parou quando o Professor Salazar acabou com o descalabro, em 1928/29(2).
Foi sol (sobretudo por causa do “Fontismo”) de pouca dura: em 1890, o país estava novamente em bancarrota, cai-nos o Ultimato (de 1890) em cima, o Partido Republicano entra a subverter as instituições vigentes e a convulsão e desvario crescente acaba num crime de regicídio. Daí a dois anos um golpe de Estado inconstitucional, que nada justificava, implanta a República.
A quarta tentativa decorre de 1910 a 1926. Com fuga para a frente, tentando implantar o “democratismo”, uma versão serôdia do pior que a Revolução Francesa trouxe.
O desastre foi extenso, agravado pela desgraçada prestação na I Grande Guerra, sobretudo na França: 45 governos, violência, fome, quarteladas, bancarrota. Finalmente a maior parte dos militares fartou-se do caos e impôs uma ditadura militar e acabou com a Carbonária, braço armado das forças mais extremistas e anárquicas.
Mas sabendo impor a ordem, os militares não se entendiam quanto ao resto. Foi Salazar que impôs um entendimento, um rumo e uma doutrina. Não fora ele (e Carmona) e tudo teria revertido ao anterior, já que a única certeza que havia entre os “revolucionários” militares era não quererem tolerar a bagunça dos partidos políticos, sobretudo a “ditadura” do Partido Democrático, do Dr. Afonso Costa — aliás, precursor ideológico do chamado “reviralho” e do actual Partido Socialista.
Tivemos então o interregno do Estado Novo entre 1933 e 1974, cujo sucesso — sim foi um sucesso — se deveu justamente a fazer-se quase tudo ao contrário do que se tinha feito desde 1820 e adaptar as instituições, a ossatura do Estado e as leis, à idiossincrasia cultural e telúrica da Nação Portuguesa. E sem importar acriticamente modelos estrangeiros que nos são estranhos e até odiosos.
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Ocorre o 25 de Abril de 1974 — note-se vivendo o país em estabilidade social e política; com finanças fortes; a economia a crescer 7% ao ano (em Angola chegava aos 14% e em Moçambique aos 9%); pleno emprego; a aguentar estóica e vitoriosamente uma guerra de guerrilha em três frentes, que grande parte do mundo fomentava ou apoiava, contra interesses nacionais; sem dívida que se visse e apenas com umas pequenas células comunistas que faziam alguns atentados violentos e eram perseguidos pelas polícias — e logo os próceres do mesmo (vencidas parcialmente as maléficas forças comunistas, em fins de 1975) intentaram voltar aos tempos antigos. E assim estamos na quinta tentativa, que já leva 49 anos, ou 41, se nos reportarmos à tal data de 1982.
Não sem que já tivéssemos três iminentes bancarrotas, uma dívida impagável em futuro previsível, uma instabilidade social permanente (só como exemplo, em média, metade dos funcionários públicos ou trabalhadores de empresas estatais estão em greve ou de baixa, e cerca de dois milhões de pessoas são subsídio-dependentes), não se consegue resolver um único problema sério que exista e com a soberania reduzida a quase nada.
Só não implodiu tudo ainda, por via dos fundos comunitários e porque não há entraves ao endividamento (também não é por acaso que as Forças Armadas estão reduzidas à ínfima espécie). Aliás, o dinheiro há muito que não tem nada a ver com a economia real, é perfeitamente manipulado e nem sequer existe, é escritural!
Mas as colunas do “deve” e do “haver”, não deixam de ser contabilizadas… Ou seja, vivemos todos no maior logro e mentira.
Por isso o sistema político em que estamos atolados, baseado nas antigas regras de Montesquieu (que raramente funcionaram) e na existência de partidos políticos — a pior invenção da “ciência” política, desde sempre, o qual (começando em poderes ocultos) nos querem impingir —, não serve e não tem a mais remota hipótese de funcionar ou dar bons frutos.
Enquanto houver partidos políticos, não pode haver País, pois a política jamais será nacional, mas partidária. Representa a guerra civil permanente (incluindo dentro dos partidos) na melhor das hipóteses, sem armas.
A única altura em que existe alguma utilidade nos partidos políticos é quando convergem, isto é, quando se anulam…
Um partido político nasce, normalmente, na decorrência de um almoço, ou de uma tertúlia mais ou menos conspiratória; num partido político, não há triagem, não há formação, não há valores, raramente há ética e vive-se no “bota abaixo”. E quando têm ideologia a coisa ainda fica pior, pois nenhuma ideologia serviu até hoje algo de positivo.
Funcionam basicamente como uma agência de empregos em que o “padrinho-mor” distribui as benesses conforme as “lealdades”. O “sistema” só pode piorar e corromper-se e, deste modo, só ficam os piores e a seguir são chamados os marginais, acabando num nepotismo familiar e partidário.
É já neste patamar que estamos em Portugal, talvez a um nível nunca atingido em nenhuma das anteriores quatro tentativas.
No fim, o poder legislativo (governo e parlamento) blinda-se para se tornar inatingível e evitar qualquer mudança. O país afunda-se e as coisas mais inverosímeis tomam lugar.
Toda a gente se diz democrata (agora), mas não pode haver democracia sem democratas, pois afirmar não é sê-lo. Além disso a democracia (e há várias definições ou formas de a exercer) é um sistema político — e não passa disso — cheio de falhas. Mas ninguém quer discutir ou melhorar o que está implantado. O que é profundamente… antidemocrático!
Não está acima da nação, da liberdade, da verdade, da ética, da moral, da soberania, etc. E acaba por ser também um logro pois está baseada na quantidade e não na qualidade.
Tenta iludir psicologicamente as pessoas que elas de facto “mandam” alguma coisa, quando a realidade é completamente distinta; e pretende que os cidadãos decidam (votem) sobre assuntos para os quais não estão minimamente preparados. E onde a demagogia supera sempre a informação e a verdade. Só para ficarmos por aqui.
Como pano de fundo de tudo faz-se muito uso da Declaração Universal dos Direitos do Homem que veio substituir, sem vantagem, a “Tábua dos Dez Mandamentos” e que se tornou num outro logro pois — salvando-se eventuais boas intenções como meta utópica — de nada pode valer sem uma correspondente Declaração sobre os “deveres” do Homem, em que os direitos devem derivar dos “deveres” cumpridos.
Não há sistemas políticos perfeitos, até porque são concebidos e servidos por pessoas de carne e osso. Mas na senda em que estamos, seguramente que não vamos lá, isto é, garantir a segurança, a justiça e o bem-estar — por esta ordem — para os nacionais, o que representa as funções clássicas de um qualquer Estado.
Nos dias de hoje só a “contra-revolução” é revolucionária…
Brandão Ferreira
Tenente-Coronel Piloto Aviador (Ref.)
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(1) Pseudónimo de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, médico e escritor (1839-1871).
(2) Por curiosidade, refere-se que este banco, que era um dos maiores e mais antigos do mundo, fundado em 1762, veio a abrir falência, na sequência de uma megaoperação corrupta (investimentos especulativos fraudulentos) de um seu funcionário (um tal Nick Leeson), na sucursal de Singapura, em 1995.