Se a quantidade de água lançada sobre os fogos fosse equivalente à torrente de palavras, artigos, entrevistas e acções mediáticas que sobre a temática em questão já foram ditas, escritas e efectuadas, certamente que o “negócio” dos incêndios não era questão e viveríamos sem labaredas nas próximas décadas. O problema é que às palavras da boca para fora não se seguem as acções adequadas.
Com isto dito pareceria sensato abster-me de verter no papel uma qualquer outra verborreia. E no entanto, é isso o que fazemos. A razão é simples: pensamos que apesar de tudo o que tem sido dito, 90% aplica-se a efeitos e não a causas e por isso não há soluções que resultem.
E, demos conta, que no fim de cinco décadas em que passou a haver incêndios a eito (eis a primeira reflexão a ter em conta!), só o ano passado houve a coragem de pôr o dedo nalgumas feridas.
Devemos começar por referir algumas evidências:
Desde sempre que houve florestas; desde sempre que houve pessoas — e o seu grau de educação sempre tem evoluído; sempre houve pirómanos e desequilibrados; sempre houve calor e outros fenómenos meteorológicos propiciadores a fogos; as preocupações com o ambiente têm aumentado (e bem) exponencialmente; os meios tecnológicos à disposição são cada vez mais e melhores, etc., tem havido tudo isto, mas o número de incêndios florestais (é desses que estamos a tratar), não cessa de aumentar!
Outra constatação é que se trata de um fenómeno complexo e interdisciplinar (e por isso interministerial) e é tendo isto em conta que deve ser tratado. Aparentemente as investigações feitas a nível da Polícia Judiciária, não revelaram até agora nenhuma teia de nexos. Provavelmente a razão está no que dissemos atrás: não haverá apenas uma “teia”, mas várias…
Julgamos que a principal razão que leva a este aumento de fogos, cuja esmagadora maioria vem a público como tendo origem criminosa — embora sempre difusa — tem a ver com “negócios” a que se convencionou chamar “o negócio do fogo”, ou “a indústria do fogo”. Ou seja, quanto mais dinheiro o governo anunciar que vai injectar no combate aos fogos, mais fogos irá haver…
O “negócio” dos incêndios
Sem querermos referir dados concretos iremos dissertar sobre algumas áreas onde o “negócio” do fogo pode ter lugar e noutras onde o “combate” não se está a fazer com a desejada eficácia. O assunto é melindroso, mas tem de ser tratado. Não se pretende lançar acusações ou generalizar, mas é preciso “podar os ramos podres” para não matar a árvore. A pergunta tem que ser posta e é esta: a quem interessará o fogo?
Eis algumas hipóteses sem preocupação de hierarquia:
— Ao “negócio” da compra e venda da madeira: a madeira queimada é mais barata, dá lucros a curto prazo, mas é suicidária a longo prazo;
— Às celulosas, no sentido em que poderão querer promover a substituição do coberto vegetal por outro de crescimento mais rápido e melhor para o negócio do papel;
— À especulação imobiliária, no sentido de favorecer o “negócio” da compra e venda de propriedades;
— Ao “negócio” da caça privada versus caça pública, atente-se às polémicas havidas;
— Ao “negócio” das indústrias relacionadas com o combate a fogos, viaturas, equipamentos diversos, extintores, compostos químicos, etc., alguns dos quais estão relacionados com elementos da própria estrutura de comando de bombeiros (como chegou a vir a público no passado);
— Ao “negócio” dos meios aéreos para combate a incêndios. Este negócio disparou nos últimos anos. Até ao governo do eng. Guterres a maioria dos meios aéreos envolvidos pertencia à Força Aérea (FA), que tinha gasto nos anos 80, cerca de 200.000 contos em equipamentos.
Nessa altura, cremos que em 1997, o então secretário de Estado Armando Vara entendeu (vá-se lá saber porquê!)(1), que não competia à FA intervir nos incêndios mas sim que deveriam ser contratadas empresas civis. Compreende-se mal esta atitude a não ser pela sanha existente por parte da maioria dos políticos em menorizar os militares e as Forças Armadas. Certo é, também, que a FA não paga comissões.
No meio disto tudo — o que acresce à complexidade —, há um sem número de hipóteses de mão criminosa que passa por vinganças pessoais; as consequências da última lei sobre baldios; queimadas mal feitas ou ilegais; pirómanos (e alguns irão porventura parar aos bombeiros), questões derivadas de heranças e os eternos descuidos e negligências.
Os investigadores têm, como podem os leitores aperceber-se, muito por onde se entreter…
No campo da prevenção e combate tem reinado a confusão, o “complexo de quinta” e a inadequação.
Nesta última encontram-se as leis e o processo de as aplicar e julgar. Falar sobre isto exigiria um tratado. Em síntese, as competências entre ministério público, tribunais e polícias tem provado nas últimas décadas ser de uma grande ineficiência e fonte de problemas; o Código Penal e o Código de Processo Penal favorecem os criminosos, castigam o cidadão honesto e prejudicam o trabalho da polícia e, a montante de tudo isto e envolvendo-o como um espartilho, existe uma contumaz subversão da autoridade.
Ora urge fazer leis que ponham regras à venda de madeira queimada; no plantio de coberto vegetal; à obrigatoriedade da limpeza das matas e abertura de aceiros; à proibição de qualquer tipo de construção em área ardida durante “x” anos; à equidade na distribuição de terrenos destinados à caça e mais um sem número de coisas relacionadas com esta questão. E, claro, é necessário expeditar a constituição e resolução de processos e julgar e penalizar todo o indivíduo ou organização que tenha cometido um ilícito. E de não os soltar logo a seguir.
A estrutura da protecção civil que coordena o combate aos incêndios prima sobretudo pela falta de clareza. Isto é, não estão devidamente atribuídas responsabilidades de comando de que resulta uma evidente dificuldade na atribuição de meios e prioridades e no apuramento de responsabilidades. Para melhorar esta área torna-se necessário combater o “complexo de quinta” (muito arreigado!) e arranjar uma estrutura com comando centralizado e execução descentralizada; estabelecimento eventual de níveis diferenciados de decisão e linhas claras de autoridade. O afastamento dos militares de toda esta estrutura foi um erro crasso que após a “débacle” do ano de 2003, já foi parcialmente corrigido.
Temos a seguir o problema dos bombeiros. Os bombeiros sendo os “soldados da paz” (parece que só se pode criticar os soldados da “guerra”…), pelos serviços prestados e pela maioria ser voluntária goza de natural prestígio em toda a população. E têm estado até há pouco acima de qualquer crítica. Ora ninguém nem nenhuma corporação deve estar acima de qualquer crítica. O Estado tem-se valido do elevado número de corporações voluntárias para poupar nos sapadores, profissionais. Ora as exigências da sociedade actual não se compadecem com este estado de coisas. Acresce que qualquer pessoa pode ser “comandante” de um quartel de bombeiros voluntários e que a instrução e disponibilidade deixam muito a desejar. Basta aliás olhar para o fardamento e atavio para se duvidar da operacionalidade existente. Há pois que impôr alguma ordem neste estado de coisas.
Finalmente os meios aéreos. Somos de opinião que os meios de combate a incêndios devem estar na FA. Só quando estes forem insuficientes se devem alugar outros. Haverá apenas que compatibilizar as exigências e sazonabilidade desses meios com as condicionantes operacionais e de dispositivo militar. Mas isso não parece ser obstáculo intransponível. Acordos de cooperação entre países amigos poderão e deverão ser feitos para optimizar os recursos.
Os incêndios são a todos os títulos uma calamidade para Portugal que se repetem numa cadência previsível.
Por isso não se entende o descaso, a incompetência e a falta de vontade política que os sucessivos governos têm demonstrado face a tão gravosa situação. Parece que criámos um sistema político e uma sociedade que convive com todos os problemas e tolera todos os vícios. E não resolve nenhum.
Brandão Ferreira
Tenente-Coronel Piloto Aviador (Ref.)
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(1) Apesar de constar nas missões secundárias da FA e o secretário de Estado não ter competência para as mudar…
NOTA: Nos últimos tempos creio que alguma melhoria existiu sobretudo na organização e comando e controlo dos meios, na Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil, fruto certamente da influência dos militares para lá destacados e cuja acção não parece estar a ser sabotada a alto nível, como ocorreu no passado. E tem-se conseguido pôr um pouco de ordem nos corpos de bombeiros voluntários — que no cômputo geral e desde há décadas, pareciam estar mais do lado do problema e não da solução — o que parece estar a gerar uma reacção (pelos indícios já vindos à tona) a que em linguagem popular se designa por “excesso de zelo”, “braços caídos” ou “resistência surda”. Parece que agora estão sempre a “aguardar ordens”…
O ponto fulcral de toda a questão, que é a repressão e castigo de quem prevarica — desde há alguns anos a esta parte a Polícia Judiciária passou a prender dezenas e dezenas de pirómanos (será que do anterior não tinham ordens para o fazer?) e nada acontece. Nem quase nunca (pelo menos que se saiba) se chega à mão que paga…
Será que chamar os nomes às coisas põe em causa o “Estado de Direito democrático”, apregoado em loas quase diárias?
Os incêndios só raramente têm causas naturais e, seguramente, nada têm a ver com as hipotéticas alterações climáticas!