No passado dia 23 de Fevereiro completaram-se 40 anos sobre a tentativa de golpe de Estado ocorrido na mesma data em 1981, em Espanha, a qual ficou conhecida por “23-F”. Com o falecimento do Caudillo e Generalíssimo Francisco Franco em 20 de Novembro de 1975 e a proclamação de Don Juan Carlos de Borbón como Rei de Espanha pelas Cortes em 22 do mesmo mês e ano, tudo em conformidade com a Lei da Sucessão franquista de 1947 e sua indigitação formal em 1969 pelo Chefe de Estado como seu sucessor e Rei, iniciou-se a denominada transição do regime e sistema autocrático franquista, aliás já uma Monarquia sem Rei, para o regime monárquico constitucional e sistema democrático pluralista, o qual, em termos formais, culminou com a aprovação por referendo popular, universal e livre da Constituição espanhola de 1978 vigente; esta aprovação contou com o voto favorável de 15.706.087 votantes num universo de 17.873.301, correspondendo assim a 88,54% dos votos expressos.
Convém notar que esta foi a única consulta popular em que o Rei Don Juan Carlos I e a Rainha Doña Sofia exerceram o seu direito de voto, o que fizeram com vista a darem o exemplo e a incentivarem os espanhóis a pronunciarem-se sobre o projecto de Lei Fundamental que lhes era proposto pelas Cortes para ratificação; desde então os reis de Espanha nunca mais exerceram tal direito por serem símbolo da unidade de Espanha e dos espanhóis, e assim se afirmarem como estando acima de qualquer disputa político-partidária.
Portanto, de forma claríssima, a maioria dos espanhóis, mesmo contando com o número total de 26.632.180 recenseados, ratificou o regime monárquico constitucional e o sistema democrático pluralista de carácter parlamentar, em que o Rei deixava de ter quase todos os poderes legislativos e a totalidade dos executivos “herdados” de Franco, passando a ter funções eminentemente protocolares, e o poder legislativo e executivo ficava nas, e emanava das, Cortes Gerais (Câmara dos Deputados e Senado) eleitas por sufrágio universal, directo e proporcional: Espanha viu assim legitimadas pelo voto popular e livre as suas instituições do poder político. Ou seja, os espanhóis votaram favoravelmente o regime monárquico constitucional, consequentemente confirmaram como seu Rei Don Juan Carlos I e o sistema democrático pluralista parlamentar.
Porém, a direita radical franquista, aliás com expressão significativa, que não necessariamente maioritária, nas hierarquias das Forças Armadas e da Guardia Civil (força de segurança militar correspondente à Guarda Nacional Republicana portuguesa), não se “acomodou”. E para tal contribuiu em muito o recrudescimento das acções armadas, ou seja, terroristas, da esquerda extremista independentista basca marxista-leninista, protagonizadas pela ETA militar (Euskadi Ta Askatasuna — Pátria Basca Livre ou Pátria Basca e Liberdade) fundada em 1959 e apoiada politicamente pelo seu “braço civil” o partido político Herri Batasuna (Unidade Popular), fundado em 1978 como coligação de todas as organizações da dita esquerda basca, o qual veio a ser ilegalizado pelo Tribunal Supremo de Espanha em 2003 por ligação à organização terrorista.
Tais acções traduziram-se na multiplicação de atentados bombistas contra pessoas e bens, de assassinatos de membros da Policía Nacional e, sobretudo, militares da Guardia Civil e das Forças Armadas de várias patentes, com especial relevo para o Exército, magistrados, civis e políticos representantes ou tidos por coniventes com o poder político central de Madrid e de empresários bascos que se recusavam a pagar o “imposto revolucionário” extorquido pela ETA com vista ao seu financiamento. Contudo, não obstante estas acções serem predominantemente praticadas em território do País Basco espanhol, composto pelas províncias de Álava, Biscaia e Guipúscoa, situadas no nordeste de Espanha, as mesmas eram igualmente levadas a cabo noutras regiões, com especial incidência em Madrid, mas também no País Basco francês, correspondente às circunscrições ou províncias de Lapurdi, Nafarroa Beherea e Zuberroa nos Pirenéus e sudoeste de França.
Assim, esta onda de violência terrorista separatista não só criou um sentimento generalizado de insegurança e repúdio entre os espanhóis pelas acções etarras, como levou a uma “revolta surda” no seio das Forças Armadas e Guardia Civil, e propiciou um clima conspirativo entre as hostes franquistas contra o recém nascido regime monárquico constitucional e sistema democrático parlamentar instituídos pela Constituição de 1978.
O resultado foi a convergência de várias conspirações civis e militares na tentativa de golpe de Estado, ocorrida em Madrid a 23 de Fevereiro de 1981.
Às 18h20 horas desse dia, uma força de mais de 200 militares da Guardia Civil, comandada pelo seu Tenente-Coronel António Tejero Molina, ocupou o Palácio das Cortes e sequestrou no seu interior quase todo o Governo e parlamentares da Câmara dos Deputados. Pouco depois, em Valência, o prestigiado Capitão-General Jaime Milans del Boch, comandante da III Região Militar aí sedeada, sublevou-se e colocou nas ruas da cidade carros de combate (tanques) e declarou o “estado de excepção”, assumindo na mesma o poder civil. Por outro lado, nos bastidores, o General de Divisão Luís Torres Rojas, à data governador militar da Corunha e ex-comandante da poderosa Divisão Blindada Brunete do Exército, concentrada em várias unidades nos arredores de Madrid e comandada pelo General de Divisão Just, tentou reassumir, sem êxito, o comando da mesma com vista à ocupação militar da capital espanhola, o que, a ter acontecido, teria ditado a quase certa vitória dos golpistas. Mas também o General de Divisão Alfonso Armada, à data 2º chefe do Estado-Maior do Exército, amigo íntimo do Rei e seu ex-colaborador na Casa Real, manobrou junto de outras altas patentes militares tentando convencê-las de que o golpe era do conhecimento de Don Juan Carlos I e, de alguma forma, caucionado por ele, o que não era verdade nem logrou conseguir — Armada chegou a ir ao Palácio das Cortes para negociar com Tejero a desocupação e ser ele o próximo Presidente do Governo (primeiro-ministro), o que foi recusado pelo Tenente-Coronel.
Face ao “vazio político” criado pelo sequestro do Governo e dos deputados, o Rei, ainda que à margem da Constituição, reassumiu de imediato os plenos poderes “herdados” de Franco, constituiu um governo de emergência integrado por secretários e subsecretários de Estado daquele e chefiado por Francisco Laína, director da Segurança de Estado (serviços secretos civis), homem da confiança do monarca, assumindo este a absoluta chefia do Estado e o comando em chefe das Forças Armadas.
Às 21h00 horas locais foi divulgado pelo Ministério do Interior um comunicado que informava sobre a constituição do referido governo provisório chefiado por Laína e que o mesmo estava em estreito contacto com a Junta de Chefes de Estado-Maior dos 3 ramos das Forças Armadas. De igual modo, o carismático Presidente da Generalitat (governo autonómico) da Catalunha, Jordi Pujol, cerca das 22h00 horas, fez uma alocução ao país via Rádio Nacional e Rádio Exterior apelando à tranquilidade face à situação vivida em Madrid e Valência, colocando-se ao lado do Rei. Esta comunicação terá sido mais dirigida, ainda que subliminarmente, às várias chefias das Regiões Militares de Espanha. E isto porque as mesmas estavam expectantes face ao desenrolar dos acontecimentos e, na sua maioria, aguardando a sublevação da já citada Divisão Brunet e da Região Militar sedeada em Barcelona para, qual “efeito dominó” invertido, também se sublevarem e aderirem ao golpe, como foi o caso, por exemplo, da Região Militar sedeada em Saragoça, Aragão, que aguardava o levantamento da de Barcelona para a seguir, o que não sucedeu em nenhum dos casos.
Entretanto, a partir do Palácio da Zarzuela, o Rei desdobrou-se em contactos telefónicos com múltiplas chefias militares visando assegurar-se da sua lealdade à Coroa, isto é, a si próprio, e em defesa da legalidade constitucional, o que terá conseguido na sua totalidade cerca da 01h00 hora do dia 24 de Fevereiro, quando, envergando o uniforme de Capitão-General do Exército, dirigiu aos Espanhóis, via TVE em directo, uma breve alocução a partir da sua residência oficial, informando que tinha ordenado às chefias militares para obedecerem às ordens da Junta de Chefes de Estado-Maior e às demais autoridades civis, sendo que desde o início Don Juan Carlos tinha contado com a lealdade das chefias nacionais da Guardia Civil e da Policía Nacional.
O golpe tinha fracassado!
Seguiu-se a rendição e detenção de Milans del Boche em Valência por ordem do próprio Rei, cerca das 05h00 horas, e a de Tejero Molina em Madrid por volta das 12h00 horas.
À laia de curiosidade, o hoje Rei Don Felipe VI, à data com 13 anos de idade, acompanhou o pai no seu gabinete de trabalho durante a maior parte do tempo até ter adormecido num sofá do mesmo. Esta revelação foi efectuada por sua mãe, a Rainha Sofia, numa autobiografia mediante entrevistas concedidas a uma reputada biógrafa, tendo justificado a presença do adolescente Príncipe das Astúrias no gabinete de seu pai por este pretender que o filho começasse a aprender como se lidava com dificuldades extremas. Parece que neste e outros aspectos Juan Caros I teve êxito quanto à educação e formação do seu filho, o que tem sido demonstrado pelo comportamento exemplar de Don Felipe VI, quer em termos pessoais como enquanto Rei de Espanha.
Nos dias que se seguiram ao “23-F” milhões de espanhóis manifestaram-se nas ruas de Madrid e de outras cidades espanholas em apoio a Don Juan Carlos I e em preito de homenagem ao mesmo por ter assegurado a continuidade do sistema democrático parlamentar. E um dos testemunhos mais significativos desse reconhecimento foi o discurso do já mítico secretário-geral do PCE Santiago Carrillo efectuado na tribuna da Câmara dos Deputados na primeira sessão plenária realizada após o frustrado golpe. Aliás, o líder comunista, ao longo da sua vida demonstrou sempre grande apreço e consideração por Don Juan Carlos I, chegando a afirmar numa das suas últimas entrevistas televisivas que, sendo comunista era republicano mas, como homem e espanhol, era “juancarlista”.
Ironicamente, quando Espanha comemora os 40 anos sobre o “23-F” e a consolidação da Monarquia constitucional democrática, pluralista e parlamentar, turbas de desordeiros, saqueadores de lojas de marcas de luxo e vândalos de património público assim agem em defesa de um “rapper” condenado três vezes pelos tribunais espanhóis: a última a prisão efectiva de 9 meses, por reiterada reincidência na prática de crimes de injúrias contra a Coroa e toda a Família Real, desde o Rei Emérito Don Juan Carlos I a seu Filho e Rei Don Felipe VI, ignorando que se hoje se podem criticar livremente as instituições políticas espanholas e seus titulares, o devem ao Rei que ora é insultado.
A título de epílogo, refira-se não se poder estranhar que injúrias proferidas contra o Rei em Espanha sejam consideradas crime, como o é qualquer injúria dirigida a um espanhol comum; e em Portugal também a injúria é crime previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal com pena de prisão até 3 meses ou multa até 120 dias, sendo a pena agravada ou elevada em metade nos seus limites mínimo e máximo, isto é, até 4 meses e 15 dias de prisão ou multa até 180 dias se a pessoa injuriada for, entre outros, o Presidente da República, tudo nos termos do artigo 184º e alínea l) do nº 2 do artigo 132º do mesmo Código.
Portanto, é tão aceitável, compreensível e justificável ser criminalizada e punida a injúria dirigida ao Rei em Espanha, como o é em Portugal quando dirigida ao Presidente da República Portuguesa, pois ambos são chefes de Estado.
Face à notícia de que em Portugal houve umas quantas pessoas a assinar um documento de indignação e solidariedade para com o rapper espanhol por ter sido vítima de um “atentado” à liberdade de expressão, tal só pode ter mesmo saído de “cabeças iluminadas” dos “costumeiros pseudo-intelectualoides” cá do burgo, sempre lestos, em Terras Lusas, ou a partir delas, a acusar de delito de opinião, até perante a Justiça, quem expressa ideias diferentes das suas.
Francisco Garcia dos Santos
In O Notícias de Almeirim
Bibliografia: Juan Carlos Biografia, de Paul Preston, Quetzal Editores; Anatomia de um Instante, de Javier Cercas, D. Quixote (investigação exaustiva e considerada a melhor obra sobre o “23-F”), entre outros.