Vinte anos depois e muitos biliões de dólares gastos (fora o que falta gastar) com uma massiva mobilização de meios militares, eis o canto do cisne em Cabul: milhares de mortos e feridos nas forças da coligação e um número que jamais se apurará de baixas afegãs — mas que andarão na ordem das duas centenas de milhar — acrescido de incomensurável sofrimento humano, assiste-se a uma derrota completa da coligação liderada pelos Estados Unidos da América, a NATO, a União Europeia e os decadentes Canadá e Austrália (sobretudo o primeiro). A única coisa que ainda se vai aguentando é a NATO, enquanto lhe restar um pouco do seu “esqueleto” e fibra militar.(1)
A vitória talibã não surpreende, o que pode surpreender é a rapidez da derrocada final. Tudo se desmoronou como um castelo de cartas. Houve aqui uma falha descomunal na avaliação da situação e, ou, uma enorme pusilanimidade de actuação.
Portugal também perdeu esta guerra — onde nunca se deveria ter metido — pois teve a sua parte de cooperação na coligação (que chegou a envolver 37 países) a vários títulos: político, diplomático e militar (não sei se chegámos a fazer algum negócio, mas presumo que não…).
As forças militares portuguesas estiveram presentes no território, desde 2002, até ao princípio deste ano, e somaram cerca de 4.500 efectivos (o Ministério da Defesa há-de saber ao certo quantos — se é que sabe alguma coisa), sofreram dois mortos e um ferido grave (felizmente muito poucos, dada a perigosidade do teatro de operações e a falta de algum equipamento necessário, algum do qual foi emprestado) e portaram-se bastante bem na sua generalidade, tendo obtido muitos louvores de estranhos, sendo o principal oriundo de um comandante inglês de teatro que veio a chegar ao posto militar mais elevado do Reino Unido. Referiu mais tarde, os encómios às forças portuguesas, no próprio parlamento em Westminster e num livro de memórias que escreveu. Não é normal ver esta atitude num general inglês.
A participação militar portuguesa no conflito passou praticamente despercebida em Portugal, pois a nível do poder político e na generalidade dos órgãos de comunicação social, fez-se gala em ignorar e denegrir tudo o que tem a ver com a Instituição Militar, as Forças Armadas e os militares.
Nos meios militares sabia-se (e julgo que ainda se sabe), que a operação militar mais complexa de se fazer é uma operação anfíbia, mas a mais difícil e perigosa é uma retirada, seja ela táctica ou estratégica, sobretudo se em contacto com o inimigo. Associar a uma retirada militar uma “evacuação” diplomática e política, torna a operação ainda mais complexa, complicada e perigosa. Exige alguma dose de talento e coragem.
Esta retirada ainda não terminou, mas já se pode afirmar que talento e coragem faltaram em larga escala. E não se conhecem pormenores do que tenha ficado previamente acordado. Aliás, praticamente tudo correu mal no Afeganistão.
A ideia de lá ir intervir militarmente para combater uma eventual base de “exportação” de actos terroristas, pode ser defensável se houver provas suficientes de tal facto. Mas que diabo, um país com o poderio dos EUA, ou a própria NATO, se quiser ir por essa via, faz ataques cirúrgicos (aéreos, com “drones”, mísseis de cruzeiro, etc.), pode realizar “golpes de mão” com tropas de operações especiais, mas não se deve aventurar a ocupar um país. Muito menos um país como o Afeganistão. E já nem falo em medidas diplomáticas, financeiras e económicas, de pressão, que possam estar ao alcance de serem efectuadas.
Isto para já não falar no pretexto usado que foi o ataque às “torres gémeas”, no 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque (o Afeganistão foi atacado em Outubro seguinte), cujo principal responsável (ou tido como tal) o príncipe saudita, Ossama Bin Laden, que estaria refugiado no território e cujo governo talibã se recusara a entregar às autoridades americanas. Ora vão ter que fazer um grande esforço até eu acreditar que o ataque às torres gémeas, ao Pentágono, etc., se desenrolou do modo que ficou vertido oficialmente.
O caso, porém, muda de figura se acreditarmos que razões mais fortes se moveram para a decisão de ocupar militarmente um território como o Afeganistão.
Como, por exemplo, o intuito de controlar o contrabando do ópio ali originado, ou sobretudo fazer do Afeganistão uma espécie de placa giratória para o escoamento dos hidrocarbonetos existentes no centro da grande massa da Eurásia, nomeadamente os que poderiam ser bombeados dos territórios que se tinham “descolonizado” da extinta URSS, após a queda do “Muro de Berlim”, e trazê-los para locais (portos) onde pudessem ser distribuídos.
Evidentemente que estas e outras coisas não costumam ser assumidas publicamente e fica sempre bem apresentar à opinião pública (sobretudo à ocidental) uma ideia aparentemente filantrópica: o amor à democracia e o combate ao obscurantismo (seja lá o que isso for). Ora aí está uma razão “plausível” para ocupar um país.
Azar, o país não querer nada disso… Nem ser geopoliticamente viável a nenhuma força exterior fazê-lo.
Até um aprendiz de feiticeiro conseguia perceber isto se olhasse superficialmente para o mapa e para a história do local. Por isso esta operação não foi feita por ignorância, boa intenção ou erro de cálculo: foi deliberada.
O Afeganistão tem uma massa-crítica considerável dado o tamanho do seu território (652.000 Km2) e o número da sua população (38 milhões). Ora esta população está dividida em etnias, tribos e clãs com tradições ancestrais e isoladas umas das outras por cordilheiras de montanhas e outros obstáculos naturais e com um clima duro em termos de extremos de temperaturas. E habituados a viver em conflitos e guerras permanentes.
É um país muito pobre (daí a importância da papoila do ópio), economicamente subdesenvolvido — mas possuindo uma imensa riqueza em termos minerais, por explorar — e socialmente pouco coeso, a não ser na vertente religiosa, apesar de diferentes “tonalidades” existentes (80 a 85% sunitas e 15 a 20% xiitas).
Mas independentemente das suas diferenças e desavenças, obviamente, que a generalidade da população iria sentir a presença dos militares ocidentais como invasores e ocupantes; “infiéis” por serem de religião diferente e “ofensivos” por serem portadores de costumes e valores em tudo estranhos à sua índole e matriz ancestral.
Seria difícil perceber isto?
Por outro lado, está toda a gente muito preocupada com a vaga de refugiados, os direitos humanos e as “liberdade individuais”. Mas já se esqueceram do que aconteceu aos cidadãos dos países ocupados pelos nazis, por exemplo, no fim da II Guerra Mundial, e que tinham “colaborado” com estes?
Ou seja, esta coligação de países ocidentais podia lá ficar 50 anos, que nunca conseguiria mudar ou ganhar nada. A começar pela corrupção endémica. E nem sequer referimos os problemas que a própria geografia e clima colocavam às operações militares.
Mas temos que falar de outras coisas.
Os ocidentais jamais poderão ganhar uma guerra a populações como os talibãs, mesmo tendo estes apenas um número de guerrilheiros estimado em 80.000.
Esclareço, os talibãs demonstraram ter alma, acreditam no transcendente; não têm medo de morrer por causas em que acreditam; são estóicos, frugais e os sacrifícios não os tolhem.
Não hesitam ainda em cortar a cabeça ao seu inimigo e possuem uma moral em que acreditam e praticam. Ora isto representa uma força extraordinária (e não estou ao dizer isto, a defender os “princípios” daqueles seres).
Os cidadãos ocidentais (e cada vez mais os militares), especialmente os tidos por “mais desenvolvidos”, são a antítese disto tudo e não acreditam em nada, a não ser na sua conta bancária. “Aburguesaram” a sua alma, tornaram-se ateus, descuraram o transcendente e relativizaram a Moral. Querem ser “Deus” de si próprios, e vivem num liberalismo egocêntrico, individualista e egoísta.
Por isso ficaram sem moral e sem ética… Afastaram-se da virtude e aproximaram-se do vício. Estão prenhes de direitos e auto-excluídos de deveres. Os “ismos” minaram-nos e estão num processo de se renegarem e à sua História. Não há tecnologia que resolva isto, embora ajude a iludir.
Querer fazer as mulheres militares não ajudou nada; levar as questões de género e misturar as questões de orientação sexual e outros “ismos”, etc., piorou tudo nos exércitos.
Para além disto, as forças militares foram metidas num colete-de-forças que as tolhem e inibem de cumprir missões e tornam a acção de comando uma dor de cabeça permanente.
Estou a falar da ideia idiota de querer fazer guerras sem que haja mortos; preocupações extremas com “danos colaterais” e um conjunto de “regras de empenhamento” (ROE) altamente restritivas e diferenciadas, a que ainda se tem que juntar os “caveats”, ou seja, restrições ao empenhamento operacional de forças de alguns países. Por exemplo, os militares alemães só podiam ser empregues em operações de combate caso estivesse garantida a evacuação de feridos para um hospital de retaguarda, que ficasse a uma hora (creio) de distância.
Ora isto implica receio de morrer, receio de matar, receio da própria sombra!
É difícil ganhar guerras nestes moldes, sobretudo contra um inimigo que não se regula pelas mesmas regras…
Provou-se mais uma vez que os EUA são o pior aliado que se pode ter e o patético discurso do patético presidente Biden (eleito numas eleições viciadas a vários títulos) — presidente de um país cuja sociedade se está a decompor e a fracturar a uma velocidade geométrica — não deixa dúvidas sobre isso.
Quem nunca teve dúvidas sobre estes “nossos aliados” (e nunca os deixou pôr o pé em ramo verde) foi o Professor Salazar, estadista e português de rara fibra. Mas já não está fisicamente entre nós e parece que não deixou muitos seguidores…
Entretanto apareceu o inefável engenheiro António Guterres, secretário-geral daquela organização inútil e dispendiosa, que dá pelo nome de ONU (Organização das Nações Unidas — unidas, vejam bem), que mais uma vez “apela”.
O mesmo fez Sua Santidade o Papa, também ele não pára de apelar (vá lá que desta vez não pediu desculpa de nada que a Igreja tenha feito).
Fica bem apelar, mas deve ter-se em conta que de pouco ou nada serve. E quando se torna repetitivo, cansa, torna-se ridículo e ninguém liga.
Quem pode e quer faz, não apela. Uma diferença a ter em conta.
Obviamente que não se pode acreditar nas promessas já feitas pelos talibãs, mas que já aprenderam a “suavizar” o discurso é um facto. As coisas também já não são como eram há 20 anos.
Por último apareceram algumas vozes, bem-falantes, sem passarem disso, sobretudo em países da UE, a dizerem que “os talibãs ganharam a guerra e agora é preciso falar com eles”. Como? Então primeiro quiseram tirá-los do poder e matá-los; depois mudá-los por dentro, comprá-los, etc., acabaram por perder tudo e agora querem diálogo, a começar pelo nosso ex-trotskista que labora no Palácio das Necessidades? Mas será que esta gente não se enxerga?
Quem há-de agora fazer alguma coisa vai ser a Rússia, a China, a Turquia e o Irão, países que têm um interesse grande na área, devido à proximidade geográfica e histórica e têm uma política muito mais realista e livre de “pseudopráticas democráticas”. Para já não falar no Paquistão que tem sido um aliado natural dos talibãs.
Por último, estes mesmos bem-falantes vêm chorar lágrimas de crocodilo, muito preocupados com os afegãos que lá ficam (e que não pediram a ninguém para os irem lá salvar) e os seus direitos.
Curioso que nunca tiveram em conta o “direito” que outros têm de poder viver no seu território, da maneira como entenderem.
Querem impor-lhes uma democracia do século XXI, como se isso fosse o elixir do “dever ser”. Mas “ó tempora, ó mores”, não estão nada preocupados com as vagas de imigrantes islâmicos que querem impor a “sharia”, no território dos europeus!
É certo que a decência manda que, quem confiou e trabalhou para os ocidentais, no Afeganistão, lhes deve ser outorgado o estatuto de refugiado político e serem ajudados humanitariamente. Mas apenas isso.
E lembrar aqui, aos que habitam a “doce terra lusitana”, que quando foi da “descolonização” (que nem sequer se fez), não foi dada a oportunidade aos portugueses dos territórios ultramarinos — que o eram de lei, de direito e de coração —, sobretudo aos que tinham combatido nas Forças Armadas nacionais, a oportunidade de continuarem portugueses, deslocarem-se para a “Metrópole” ou, até, ficarem no respectivo território!
Foi mais uma guerra perdida que, lembro, é muito pior do que a travar.
E, mais uma vez, não se vai aprender nada.
Brandão Ferreira
Tenente-Coronel Piloto Aviador (Ref.)
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(1) Estima-se que tenham morrido até Abril deste ano, 2.448 militares americanos e mais 1.144 militares de outros países; cerca de 66.000 militares e polícias afegãos e ainda cerca de 47.000 civis. No lado oposto, talibãs e outros, cerca de 51.000. Acresce ainda 444 mortos em membros de “organizações humanitárias” (fonte “Multinews”, de 18/8/2021). Fora todos os que morreram “colateralmente” no vizinho Paquistão.